O reverso de Teixeira dos Santos ou o esgoto que também passa por baixo das mais belas moradias.
“Toda a vivência humana remete para o meio, para as circunstâncias em que se desenvolve. O meio implica a relação do homem com a natureza e com os outros homens. Da relação entre os homens emergem normas ou signos que tornam possível essa relação e determinam o comportamento. A própria sociedade impõe essas normas e exerce repressão sobre aqueles que não as seguem.” - Agostinho de Jesus Ribeiro Ferreira
Quero declarar duas notas prévias. Primeira, o ministro em causa tem ainda uma quase ligação de laços familiares com este vosso escriba. Segunda, percebo muito pouco de finanças, economia e tudo o que envolva números, poupanças, acções, investimentos e todos aqueles termos terminados em –ing com que os bancos constantemente nos bombardeiam. Uma carta do banco que traga anexada algo mais do que o saldo contabilístico revela-se uma verdadeira missão de Ecdótica. Um laborioso ruminar de empenho filológico.
Agora que vos desvendei um pouco da minha vida privada, e que pela primeira vez comecei um comentário em tom intimista, posso dizer-vos que, não desgostando da personagem – nutro inclusive uma certa admiração pelo tom sempre coloquial, sereno e insulso das suas intervenções – não posso deixar de relacionar as medidas levadas a cabo por este senhor com as gravíssimas lacunas socio-económicas que flagelam ainda o nosso país, fustigando sempre os mesmos. Exacto. Sempre os mesmos. Os tais que saem derrotados da batalha. Qual batalha? Simples. Simplex, mesmo. A batalha para que o capitalismo (porra que estou a soar a camarada) nos instiga. Há quem perca. Muito. Sempre. Dizem-me que o Homem é a medida de todas as coisas e o trabalho a medida de todos os Homens. Talvez, seguindo um pouco a máxima de que tempo é dinheiro, mas só para quem o pode fazer. Acrescento eu. E há também quem não exiga a si próprio ser melhor do que outros.
A meu ver, todo este histerismo europeu, todos estes apontamentos competitivos, todas as notas de ligação estreita entre realização pessoal com sucesso profissional, devem-se ao facto de, em Portugal, estarmos a atravessar, novamente, dias em que o novo-riquismo e o ambiente filisteu da mais baixa extracção se erigiram em valores sensíveis e que certos sectores procuram apresentar como naturais e irrepreensíveis. Fará talvez sentido, então, sublinhar, uma vez mais, que o Homem não desfigurado, vertical e alheio às mundaneidades continua a ser um pólo de consciencialização, embora isso seja extremamente entravado pelo jogo intrincadamente societário de muitos sectores que, no país, procuram imitar em caricatura o que lá fora se faz com mais experiência, mais discernimento e até com certa lealdade, embora esta seja uma lealdade nefanda, uma vez que tenta fazer passar como exemplares, conseguindo-o frequentemente, ritos de massificação, propondo com certa argúcia os valores do precário, do aparente e do vazio pedante como questões fundamentais.
Como tal, e como já o advertira outro Teixeira, mas este de Pascoaes, quando, em antiglosa a Descartes, escreveu que “existir não é pensar, é ser lembrado”, é necessário apearmo-nos da azáfama continuada (o tão afamado modus vivendi hodierno) em que, consciente ou intencionalmente, nos insensibilizamos em relação às pessoas, aos livros, à arte, aturdidos, na expressão de Lipovetsky, pelo “traguique de la légèreté”. Torna-se imperativa uma recuperação do diastema, da pausa, capaz de nos brindar com a captação mais perfeita, ou menos imperfeita, da realidade. Longe daquela, como acontece nos relatórios do FMI, por cima dos quais a poeira dos números teima em estender o seu manto tão espesso.
Ainda acredito num mundo onde o medo, a miséria e a solidão não são os governantes. Ainda acredito num mundo onde o amor surge como denominador comum para o desenrolar da acção e como ponto convergente do pulsar de sentimentos. Contudo, não podemos abarcar neste amor o sentido corriqueiro que perfilha alguma da mais recente criação. Não falo aqui, por exemplo, da tendência sentimentalóide e malsã do amor telenovelesco, pornografia camuflada que corrompe e conspurca o sentido da palavra; falo aqui do amor que se (con)funde com a loucura e pretende despir o Homem dos seus subterfúgios e convenções. Um amor que obriga o homem a reconhecer o que existe no seu âmago através da linguagem.
É isso que nos falta. A linguagem. A palavra é respiração, por isso, movimento e repouso, ritmo e quietude, que nos toca, e contagia, e nos impele à apreensão do ritmo original do mundo e à sua respiração essencial. A palavra é sístole e diástole, contracção e distensão, o movimento ritmado do mundo.
"As máquinas, um dia, talvez venham a pensar. Mas nunca terão sonhos." Escreveu-se por cá. Também eu, tal como o marinheiro do conto de Herberto Helder, prefiro morrer e deixar o meu último suspiro ao mar.
Quero declarar duas notas prévias. Primeira, o ministro em causa tem ainda uma quase ligação de laços familiares com este vosso escriba. Segunda, percebo muito pouco de finanças, economia e tudo o que envolva números, poupanças, acções, investimentos e todos aqueles termos terminados em –ing com que os bancos constantemente nos bombardeiam. Uma carta do banco que traga anexada algo mais do que o saldo contabilístico revela-se uma verdadeira missão de Ecdótica. Um laborioso ruminar de empenho filológico.
Agora que vos desvendei um pouco da minha vida privada, e que pela primeira vez comecei um comentário em tom intimista, posso dizer-vos que, não desgostando da personagem – nutro inclusive uma certa admiração pelo tom sempre coloquial, sereno e insulso das suas intervenções – não posso deixar de relacionar as medidas levadas a cabo por este senhor com as gravíssimas lacunas socio-económicas que flagelam ainda o nosso país, fustigando sempre os mesmos. Exacto. Sempre os mesmos. Os tais que saem derrotados da batalha. Qual batalha? Simples. Simplex, mesmo. A batalha para que o capitalismo (porra que estou a soar a camarada) nos instiga. Há quem perca. Muito. Sempre. Dizem-me que o Homem é a medida de todas as coisas e o trabalho a medida de todos os Homens. Talvez, seguindo um pouco a máxima de que tempo é dinheiro, mas só para quem o pode fazer. Acrescento eu. E há também quem não exiga a si próprio ser melhor do que outros.
A meu ver, todo este histerismo europeu, todos estes apontamentos competitivos, todas as notas de ligação estreita entre realização pessoal com sucesso profissional, devem-se ao facto de, em Portugal, estarmos a atravessar, novamente, dias em que o novo-riquismo e o ambiente filisteu da mais baixa extracção se erigiram em valores sensíveis e que certos sectores procuram apresentar como naturais e irrepreensíveis. Fará talvez sentido, então, sublinhar, uma vez mais, que o Homem não desfigurado, vertical e alheio às mundaneidades continua a ser um pólo de consciencialização, embora isso seja extremamente entravado pelo jogo intrincadamente societário de muitos sectores que, no país, procuram imitar em caricatura o que lá fora se faz com mais experiência, mais discernimento e até com certa lealdade, embora esta seja uma lealdade nefanda, uma vez que tenta fazer passar como exemplares, conseguindo-o frequentemente, ritos de massificação, propondo com certa argúcia os valores do precário, do aparente e do vazio pedante como questões fundamentais.
Como tal, e como já o advertira outro Teixeira, mas este de Pascoaes, quando, em antiglosa a Descartes, escreveu que “existir não é pensar, é ser lembrado”, é necessário apearmo-nos da azáfama continuada (o tão afamado modus vivendi hodierno) em que, consciente ou intencionalmente, nos insensibilizamos em relação às pessoas, aos livros, à arte, aturdidos, na expressão de Lipovetsky, pelo “traguique de la légèreté”. Torna-se imperativa uma recuperação do diastema, da pausa, capaz de nos brindar com a captação mais perfeita, ou menos imperfeita, da realidade. Longe daquela, como acontece nos relatórios do FMI, por cima dos quais a poeira dos números teima em estender o seu manto tão espesso.
Ainda acredito num mundo onde o medo, a miséria e a solidão não são os governantes. Ainda acredito num mundo onde o amor surge como denominador comum para o desenrolar da acção e como ponto convergente do pulsar de sentimentos. Contudo, não podemos abarcar neste amor o sentido corriqueiro que perfilha alguma da mais recente criação. Não falo aqui, por exemplo, da tendência sentimentalóide e malsã do amor telenovelesco, pornografia camuflada que corrompe e conspurca o sentido da palavra; falo aqui do amor que se (con)funde com a loucura e pretende despir o Homem dos seus subterfúgios e convenções. Um amor que obriga o homem a reconhecer o que existe no seu âmago através da linguagem.
É isso que nos falta. A linguagem. A palavra é respiração, por isso, movimento e repouso, ritmo e quietude, que nos toca, e contagia, e nos impele à apreensão do ritmo original do mundo e à sua respiração essencial. A palavra é sístole e diástole, contracção e distensão, o movimento ritmado do mundo.
"As máquinas, um dia, talvez venham a pensar. Mas nunca terão sonhos." Escreveu-se por cá. Também eu, tal como o marinheiro do conto de Herberto Helder, prefiro morrer e deixar o meu último suspiro ao mar.
Reflexão muito boa.