Coisas inteligentes à espera de serem escritas.

A "escrita inteligente" dos telemóveis é um dos meus maiores desconfortos ontológicos. Um mistério com redobrados contornos de malvadez. Aliás, parece-me ser esse um dos factos que me levam a não ter cedido à pressão émica que nos caracteriza enquanto sociedade; as palavras já ditas. Sim, porque escrever é hodiernamente o mesmo que montar um puzzle.

A "escrita inteligente" dos telemóveis causa-me dois desalentos de proa. Primeiro, as palavras a que normalmente mais recorremos e que são necessárias para estabelecermos uma comunicação são quase sempre substituídas por outras cuja relevância num diálogo se resume à exiguidade de algumas realidades distintas das da maioria dos comuns mortais. Ora, se eu tentar escrever "Olá" o extraordinário dicionário remete-me para a palavra "ojjj"... Recebo-as com comoção, na certeza de que não se terão baseado no dialecto dos invasores do livro Uma Casa na Escuridão para nos presentearem com este mergulho órfico.

Segundo - e este sim é causador da calcinação, qual resignação mentirosa, a que submeto o meu orgulho de escriba - sempre que o cauto e sagaz dicionário consegue prever as minhas palavras, fico com o núcleo fundo e imutável do meu ser - não que acredite nele, mas parece bem assim aqui escrito -, destroçado. Resulta desta adivinhação do dicionário uma usurpação maliciosa nas dádivas mais preciosas que recolhem de recônditas histórias de vida. O dicionário do telemóvel consegue ter direito de veto sobre o nosso discurso, sobre os momentos em que, por exemplo, queríamos que o outro acolhesse os temerosos dizeres de um amor difícil. O dicionário como que menoriza por antecipação tudo aquilo que pensávamos dizer. Fico poluto. Transgredido. Com a sensação de que o que escrevi já fora dito. Como se tudo aquilo que eu vivo também já o fora por outra pessoa. Serve isto apenas para agravar a minha certeza kristeviniana de que nada há de original em nós.

Ainda assim, e seguindo a máxima do MEC, "o nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar", tento manter a farsa das minhas denodadas criatividade e sensibilidade e, muito lentamente, experimento todas as letras que as teclas dizem traduzir. É neste lento labor, de demorada ânsia e aflitiva dedicação, que peço ao meu amor para me ler.

3 Response to "Coisas inteligentes à espera de serem escritas."

  1. Anónimo says:

    gostei deste post. bem pensado, melhor escrito.

    Unknown says:

    gracias

    Anónimo says:

    Muito interessante este post sobre a actualmente comum escrita inteligente,que todos tentamos utilizar no dia a dia.

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