Holocausto e outros que tais


(...) Dada a grande quantidade de instituições e estudiosos empenhados em preservar a sua memória, o Holocausto está hoje firmemente enraizado na vida americana. Novick, no entanto, duvida que isso seja bom. Em primeiro lugar, cita muitos exemplos de simples vulgarização. De facto, é difícil encontrar uma causa política, seja ela a favor ou contra o aborto os direitos dos animais ou os direitos dos estados, que não tenha tomado posição sobre o Holocausto. Elie Wiesel, criticando as utilizações de mau gosto a que o Holocausto é submetido, declarou: «Prometo evitar (…) os espectáculos vulgares.» (2) Mas Novick assinala que «a fotografia que utilizou o Holocausto de forma mais subtilmente imaginativa foi publicada em 1996, quando Hillary Clinton, na altura alvo de acusações de várias origens por atitudes criticáveis, apareceu na tribuna da Câmara dos Representantes enquanto o marido pronunciava o Discurso sobre o Estado da União (muito televisionado), ladeada pela filha Chelsea, e Elie Wiesel.» (3) Para Hillary Clinton, os refugiados do Kosovo postos em fuga pela Sérvia durante os bombardeamentos da NATO faziam lembrar as cenas do holocausto do filme A lista de Schindler. Um dissidente sérvio observou amargamente: «As pessoas que aprendem a história através dos filmes de Spielberg não deviam vir dizer-nos como devemos comportar-nos.» (4)
Novick argumenta também que «pretender que o Holocausto faz parte da memória da América» é uma evasão moral, porque faz-nos «desresponsabilizar de coisas que de facto dizem respeito aos americanos quando se confrontam com o seu passado, presente e futuro» (Sublinhado no original.) (5) Nisso tem toda a razão. É muito mais fácil deplorar os crimes dos outros do que olhar para os nossos. No entanto, também é verdade que, se quiséssemos, poderíamos aprender muito sobre nós mesmos a partir da experiência nazi. O Destino Manifesto foi a pedra basilar de quase todos os elementos ideológicos e programáticos da política de Lebensraum de Hitler. Na realidade, Hitler modelou a sua conquista do Leste pela conquista americana do Oeste. (6) Durante a primeira metade deste século, a maioria dos estados americanos aprovou leis autorizando a esterilização e dezenas de milhares de americanos foram esterilizados à força. Os nazis evocaram explicitamente este precedente americano quando aprovaram as suas leis de esterilização. (7) As famosas Leis de Nuremberga de 1935 privaram os judeus do direito de voto e proibiram a miscigenação entre judeus e não judeus. Os negros dos Sul-americano sofreram dos mesmos entraves legais e foram salvo de uma violência popular espontânea e consentida muito maior do que a exercida contra os judeus na Alemanha de antes da guerra (8).
Para chamar a atenção para os crimes perpetrados no estrangeiro, os Estados Unidos costumam evocar memórias do Holocausto. Contudo, o aspecto mais revelador é o momento em que o fazem. Os crimes de inimigos oficiais como o banho de sangue dos Khmers Vermelhos no Camboja, a invasão soviética do Afeganistão, a invasão do Koweit pelo Iraque e a limpeza étnica sérvia no Kosovo remetem para o Holocausto; mas o mesmo não se passa em relação a crimes em que os estados Unidos estão envolvidos.
No preciso momento em que os Khmers Vermelhos cometiam as suas atrocidades no Camboja, o governo indonésio, apoiado pelos Estados Unidos, massacrava um terço da população de Timor-leste. No entanto, ao contrário do Camboja, o genocídio de Timor não mereceu comparação com o Holocausto; nem sequer foi digno de notícias nos jornais (9). Ao mesmo tempo que a União Soviética cometia o que o Centro Simon Wiesenthal considerou «um novo genocídio» no Afeganistão, o governo guatemalteco, apoiado pelos Estados Unidos, perpetrava o que a Comissão para a Verdade na Guatemala recentemente qualificou como «genocídio» contra a população maia. O presidente Reagan minimizou as acusações contra o governo guatemalteco tratando-as como «disparates». Para elogiar Jeane Kirkpatrick no seu papel de defensora dos crimes que a administração Reagan perpetrava na América Central, o Centro Simon Wiesenthal concedeu-lhe o prémio Humanitarian of the Year (10). Houve quem insistisse com Simon Wiesenthal em privado, para reconsiderar antes da cerimónia de entrega do prémio. Recusou. Houve quem pedisse em privado a Elie Wiesel que intercedesse junto do governo israelita, principal fornecedor de armamento aos carrascos guatemaltecos. Também recusou. A administração Carter invocou a memória do Holocausto quando procurava um porto de abrigo para os boat people vietnamitas que fugiam ao regime comunista. A administração Clinton esqueceu-se do Holocausto quando forçou o regresso dos boat people haitianos que fugiam dos esquadrões da morte apoiados pelos Estados Unidos (11).
A memória do Holocausto foi chamada a primeiro plano quando a NATO, conduzida pelos Estados Unidos, começou o bombardeamento da Sérvia na Primavera de 1999. Como vimos, Daniel Goldhagen comparou os crimes sérvios contra o Kosovo com a Solução Final e, a pedido do presidente Clinton, Elie Wiesel visitou os campos de refugiados kosovares na Macedónia e na Albânia. Mas antes de Wiesel ir chorar por encomenda a sorte dos kosovares, o regime indonésio apoiado pelos Estados Unidos retomara o trabalho que deixara inacabado nos finais dos anos 70, perpetrando novos massacres em Timor-Leste. Apesar disso, o Holocausto varreu-se da memória da administração Clinton, que consentiu o banho de sangue. Como explicou um diplomata ocidental, «A Indonésia conta, Timor-Leste não. (...)"

Norman Finkelstein
(Norman Filkelstein nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, em 1953. É filho de pais sobreviventes do gueto de Varsóvia)

5 Response to "Holocausto e outros que tais"

  1. Parabéns pelo Blog.

    http://wwwbragablog.blogspot.com

    Uma imagem lúcida de certos comportamentos e de dualidade política dos Estados Unidos da América.

    Importante, porque parte de um americano judeu e que por norma muito conservador em relação às más políticas do seu país e Israel.

    Caro Sérgio

    Muito obrigado. Retribuo o elogio. Já adicionei o Bragablog aos aquedutos.

    Cumprimentos

    Caro Marco

    Norman Finkelstein é um crítico da política israelita no que concerne ao conflito israelo-árabe e afirma que o Holocausto está a ser explorado para fins políticos pro-israelitas. Um livro muito interessante.

    Cumprimentos

    BMM

    Infelizmente o Holocausto está a ser utilizado para fins menos condizentes com este vergonhoso drama humano. Normalmente, por aqueles que mais deveriam "proteger" da sua exploração.

    Mas o Holocausto também tem sofrido de uma "ortodoxia" de protecção.

    Felizmente existem outros grandes pensadores e activistas com as mesmas características do Finkelstein (exº: Chomsky).

    Cumprimentos.

    São dois grandes pensadores.

    BMM

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