Entre o excesso e a ausência


Ocupo grande parte das minhas horas de lazer ao ar livre. Lá, tenho aquilo a que chamo de uma disponibilidade para o contacto sensorial, uma espécie de obscuridade e de silêncio. Não raro, dou por mim anulado do espaço e perdido nas conversas que todos os outros à minha volta estão a ter. Um arrepio acaba por se centrar nessa capacidade activa de ganhar vida à custa da passividade de outros alguéns. É aqui que é exigida a presença de uma alteridade disponível para o encontro e para o toque.

Hoje, não foi diferente. Duas jovens de relevo significativo discutiam a importância da beleza e da rotina diária a que esta obriga. A desatenção é a máxima atenção, indigência suportada por um só nome transformado em excesso exterior: insegurança. Ambas concordavam que se arranjavam para elas. "Gosto de me sentir bem comigo própria". Esta é uma das frases mais enganosas que circula na nossa vida social. A questão é muito simples. Mesmo na solidão de um quarto, perante o espelho, na pele enrugada de um banho, até no mais fundo respirar da memória, há uma miríade de olhos que são convocados. Sejam eles os olhos activos de outros significativos - o/a amante -, sejam os olhos desconhecidos de um transeunte que passa na corrida matinal. Todos espelham um consentimento amplo acerca das formas mais estimadas de belo. Portanto, o "comigo mesmo" é mediado por uma pletora de valores e ideais culturais. Sombras projectadas. Como na fotografia da Laetitia, quantos de nós já não sofremos sós, pelas nossas próprias mãos, na procura de uma ausência vital do corpo? É aqui que convivemos com o lado desconhecido e perturbante do Homem. Um acto distraído dos dedos que circundam o corpo proporciona o excesso da tal atenção. Já dizia Herberto Helder, "enche-se por si mesmo, um copo". O que vemos não é auto-flagelação. Nem um sentido de densa comiseração. É, isso sim, uma flagelação anuída, socialmente prescrita e ontologicamente promovida.

Estes segredos contrariam as verdades vomitadas nos ouvidos predispostos dos outros. Há uma relação simultaneamente complementar e ao mesmo tempo uma perspectiva dicotómica. Todos sofremos pelos olhos dos outros na precipitação - ver ou ser visto - e todos esquecemos a convulsa matéria no nosso próprio abismo, socialmente trabalhada na paisagem da nossa culpa. No fundo, nunca conseguiremos anular o sentido de abismo, para além da superficialidade das coisas, a nossa matéria mantém segredos inviolados que nos permitem um vislumbre da nossa realidade; a superfície da nossa matéria só se mantém estruturada à custa de uma outra verdade profunda.

Masturbação estética? Não, nada disso! Mesmo em frente a um espelho, só há sexo grupal ou auto-estimulação assistida. Do you know what i mean?

2 Response to "Entre o excesso e a ausência"

  1. Anónimo says:

    Clap, clap, clap!! Sem os palavrões e as idiotices do costume até se consegue aprender algumas coisas por aqui....

    O bom velho Dr. Etcétera.

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