Doze meses, doze livros


A Geração da Utopia - Pepetela

Neste último dia de Fevereiro, repetirei a viagem literária realizada no mês anterior, revisitando a literatura de intervenção do pós-independência. Deste modo, poderemos contrapor duas formas distintas de tratamento do mesmo tema: a relação entre o passado colonial e a sociedade a construir-se. Se, por um lado, Manuel Rui, em Quem Me Dera Ser Onda, recorre ao riso como fórmula de exorcismo e de catarse e ainda aponta as crianças como uma límpida sobra de esperança no futuro, por outro, Pepetela assume o discurso de um profundo desiludido que faz o balanço do projecto nacional sonhado, em que se regista um desencanto brutal decorrente da divergência entre o desejado e a realidade, a utopia e o presente.

A Geração da Utopia, resultante de profundas vivências sociais, afectivas e intelectuais, desvenda, realisticamente, os males e as injustiças sociais que com o colonialismo se instalaram e que com a independência nacional, embora assumindo diferentes contornos, se mantiveram. Apresenta diferentes cenários temporais e espaciais, que acabam por configurar a evolução histórica, política e social sofrida pela sociedade angolana, desde a década de 60 até aos anos 90, sendo evidenciados os percursos seguidos por uma geração de nacionalistas que perseguia o sonho da independência do seu país.

A primeira parte do romance refere-se à Casa dos Estudantes do Império, situada em Lisboa, onde se reunia a juventude vinda de África para fazer as suas refeições, divertir-se, assistir a palestras e conferências e fazer política. Neste capítulo, é dada ao leitor uma ideia de como se processava a política salazarista e demonstra-se o clima de tensão e o racismo imposto pelo sistema colonial.

Partindo para a segunda parte do romance, A chana (1972), assistimos à saída da metrópole para entrarmos num espaço africano, primitivo, cuja exuberância da natureza faz o Homem sentir mais intensamente a sua miséria, num momento em que o projecto comum de uma nação livre se vai gradualmente desmantelando, deixando de ser colectivo. Estamos na década de 70, em plena guerra colonial e, na chana, definida como vários mundos fechados, atravessados uns pelos outros, a luta é real e as personagens centrais são os guerrilheiros. O sofrimento imposto pela guerra já não favorece o clima de solidariedade, antes estupidifica e desumaniza. Estamos na passagem do sonho à utopia, pois está a fazer-se uma guerra em que já ninguém acredita, intensificando-se as rivalidades e as incompreensões.

Novamente um outro espaço… agora é a pequena baía em Benguela, a Caotinha, lugar onde se refugiou Aníbal. Encontramo-nos em 1982, num ambiente de extrema beleza que, inevitavelmente, provoca a percepção do contraste entre o que poderia ser e o que é a verdadeira história. Após o desencanto provocado pela não concretização do sonho e pelos constantes desvios à causa comum verificados na sociedade angolana, Aníbal preferiu o exílio, o total afastamento da vida política, agora apartada de qualquer ideal e brutalmente corrompida. A sua morte social acaba por ser inevitável perante o fim de tudo aquilo que enaltecia a luta e a procura da angolanidade, o fim da liberdade por que se lutava. Aníbal amava de mais a liberdade para a atraiçoar, por isso renunciou ao risco de a perder, nomeadamente não se deixando prender pelas solicitações do poder e do bem-estar material após a independência.

O surgimento de uma nova burguesia está personificado na personagem Malongo, antigo estudante da Casa do Império, cuja riqueza foi conseguida através de negócios ilícitos com personalidades do meio político. Desenha-se um ambiente de troca de favores, num “toma lá, dá cá” desonesto que putrifica a sociedade. Os neo-burgueses, que enriqueceram à sombra do Estado ou à custa de negócios ilegais, têm comportamentos de novos-ricos, com tudo de trágico e de ridículo que essa palavra comporta.

Malongo é também símbolo da perda da inocência. O dinheiro fê-lo esquecer a sua situação nos tempos da Casa, os tormentos passados pelos companheiros durante a luta pela independência. Chega mesmo a ser visto como um colono dentro da sua própria terra (– Me dá pão, colono – gritou um dos miúdos, no passeio, estendendo o braço magro), assumindo atitudes racistas e de abuso de poder (– Você não aprende, não é, seu negro burro? Esqueceste outra vez o sal, filho duma puta velha. (…) Malongo segurou-lhe a cabeça com as duas mãos, enfiou-lhe a cara no prato, prova, cabrão, prova para aprenderes.)

A falta de escrúpulos dos poderosos vai-se acentuando à medida que avançamos no romance. Todos os meios são permitidos, quando o fim é a obtenção de mais dinheiro e poder, mesmo que tal implique o aproveitamento das crenças, das esperanças, da ingenuidade dos mais fragilizados. O capítulo O templo retrata a manipulação ideológica que um pequeno grupo de oportunistas pode exercer sobre uma população desencantada. Vale a pena recordar as palavras de Aníbal: Hoje que a sociedade está sem valores, as pessoas viram-se para a religião, qualquer que ela seja, precisam de acreditar nalguma coisa. E, como sempre, haverá as religiões que servem as pessoas e as que se servem das pessoas. As pessoas são apresentadas como um mero instrumento para concretização de um negócio lucrativo: – Eu ficava mais tranquilo se um arquitecto viesse ver isto. Importas-te que arranje um? Porque, se há um acidente e morre alguém, acabou, temos de inventar outro negócio.

A corrupção, o aproveitamento dos mais fracos, o abuso de poder estavam, enfim, institucionalizadas… As palavras de Aníbal a Orlando, jovem ingénuo e utópico, demonstram a sua lucidez arrepiante: E é triste sentir que a nossa geração, que vos deu apesar de tudo a independência, logo a seguir vos tirou a capacidade de a gozar.

1 Response to "Doze meses, doze livros"

  1. PontoGi says:

    Adorei a dica!
    bjo

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