a melancolia em carne viva

É difícil encontrar mulheres belas. Bonitas, entenda-se. Não faltam aquelas que por efeitos laterais se tornam esteticamente contagiantes, sem serem realmente belas. M. Duras apelidou esse artefacto de "aparência da beleza". Há muitas mulheres assim. Aparentemente belas. Mulheres para quem a sua beleza não tem peso nem sabor, nem tampouco memória de um qualquer drama ou intriga. É uma beleza sem velocidade própria, criada sem atritos ou afectos. É uma beleza de fatigante colagem e montagem, qual pretexto disfórico para as quase sempre incompreensíveis e dengosas polaróides sexuais. Depois, há as mulheres bonitas. De olhar inclinado, como um sobressalto partilhado entre animais perdidos numa espécie de imaturidade só capaz de ser reconhecida à luz de um farol longínquo. No absurdo da paixão, esse estado de sufocante desconforto em instantes, as mulheres bonitas são imoderadamente desastrosas nos gestos, nos cheiros e até no medo de finalmente adormecerem tranquilamente. E há os olhos. Como poucas palavras, a inteligência do olhar de uma mulher bonita, na sua frágil mas combativa coragem, esboça os clarões nítidos do fogo sobre o mar em convalescente e absorvente pretexto para os mais elementares delírios. E explicam o alfabeto com a ternura acumulada de saberem a fragilidade das utopias, num empolgamento constante de saberem também ler cada milímetro do seu próprio corpo. E vivem intensamente tudo o que tocam, no limite exacto da perfeição de descobrirem por exemplo a sumptuosidade do sexo. E as mulheres bonitas são tristes. De uma tristeza pintada lentamente no crepúsculo, como quem vira as costas ao sol, e olha os montes à sua volta sempre na esperança de encontrar o olhar estranho de quem não teme conhecer os peixes voadores, os navios ensombrados e todas as interrogações fundamentais. E elas, as mulheres bonitas de olhares tristes, quando nos olham, estilhaçam-nos a cara em mil pedaços de vergonha, rebentando com todas as certezas perdoadas. E ficamos pobres. De palavras. Desprovidos de recursos. Alegremente mutilados. Como milhões de imagens em fúria a dançarem numa roda insurrecta dentro do fundo do nosso peito. Os olhos delas são esse turbilhão a cicatrizar as até aí incuráveis infecções dos nossos destroços. Tudo ganha esguia coerência nos seus olhos, como se começar de novo fosse possível, em admirável ruptura. E as mulheres bonitas são sempre tristes. Em imensa sedução nocturna. Como se aceitassem o código para um arquivo secreto onde guardam tudo o que nunca foi dito. Sabem já tudo o que ainda ouvem. E pedem para mudarem de universo. Como se tivessem o poder de transformar uma adivinha no mais belo e dorido poema, e desse modo reconstituíssem nos seus olhos o recanto irrespirável da mais antiga matéria literária. Talvez por isso, apenas as mulheres bonitas possam ser encontradas por completo. Nem que seja do outro lado do sono.

6 Response to "a melancolia em carne viva"

  1. (...) ;)

    Anónimo says:

    ui? ké k te deu????

    Anónimo says:

    oh doente bebe água com gás e isso passa!

    Anónimo says:

    És o maior. mas não deixas de ser palerma. Não assino para não ficares convencido :D
    ehehehehehe

    PontoGi says:

    Por pouco nao o reconhecia nestas palavras Dr. Lindo!

    Anónimo says:

    Excelente texto!

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