Doze meses, doze livros

Quem Me Dera Ser Onda – Manuel Rui


Inauguro esta nova rubrica do Fontes do Ídolo com o livro Quem Me Dera Ser Onda, de Manuel Rui, autor angolano que integrou as manifestações literárias do pós-independência.

Através desta obra, Manuel Rui explicita uma crítica política e social acérrima, assumindo um registo satírico e irónico, que muitas vezes chega a atingir o cómico e o burlesco, dando-nos conta dos males e das injustiças de um país politicamente livre, mas prisioneiro da decadência moral e da corrupção.

Desenhemos o cenário: o tempo é o do pós-independência. Por todo lado, mesmo nas situações mais banais do quotidiano, é possível observar as ruínas dos velhos ideais libertários e igualitários. Mesmo após o entusiasmo cívico resultante da retirada dos portugueses e da derrota dos guerrilheiros do FNLA, as esperanças esbarram contra um regime unipartidário, cujos dirigentes não se mostram, pelo menos na sua totalidade, honestos. O MPLA, de formação marxista-leninista, tentando organizar o país, supõe que a teoria socialista impulsionará a superação das diferenças, em nome da igualdade e da liberdade. Mas como seria isso possível, se os seus próprios membros são os primeiros a incorrer em erros mutiladores de qualquer nação em crescimento?

O autor opta por uma estrutura narrativa e linguística simples, utilizando um registo de linguagem oral, a “linguagem de rua”, e, muitas vezes, recorrendo ao calão e às expressões e frases feitas do marxismo. Numa autêntica crónica do quotidiano, celebra o homem comum da classe média, produzindo caricaturas de comportamentos corrompidos. Para além da crítica ao autoritarismo, verifica-se uma ironia implícita contra a ineficácia do exercício burocrático do poder, contra a “directorice” existente nos quadros médios, que na sua maioria servem para encobrir a incompetência e a corrupção.

O móbil da acção é risível e hilariante: a manutenção de um porco para engorda num andar de um prédio luandense. Esta situação enquadra-se num panorama de escassez alimentar em Luanda e de proximidade da fome nas províncias. No entanto, o leitão baptizado de Carnaval e, mais tarde, rebaptizado como Carnaval da Vitória, nome da festa angolana que marca a derrota do FNLA, terá a sua vida prolongada pela astúcia das crianças que conseguem usar o sistema para levar avante os seus intentos – salvar o amigo porco dos instintos carnívoros do pai. Na realidade, usam a imaginação e o próprio sistema para brincar, transformando o porco num autêntico burguês, com a vida facilitada, desfrutando de formidáveis manjares (Comia de um hotel de primeira; nos restos vinham panados, saladas mistas, camarões, maioneses, lagosta, bolo inglês, outras coisas sempre a variar.) e exigindo certas regalias como ouvir música e receber cócegas na barriga. Por fim, o suíno estava culto, quase protocolar.

Contudo, apesar de toda a esperteza e empenho dos miúdos, o porco acaba por ser abatido, precisamente no dia do Carnaval da Vitória... Com o sacrifício do animal, malogra-se a esperança de ver o sonho das crianças realizado. Desolados, nem sequer têm a possibilidade de ver a reconciliação dos adultos, que se haviam desentendido devido à presença do porco no prédio. Ironicamente, o animal que no início do livro os afastou agora, convertido em comida, é o elemento unificador. Falta, claramente, a pureza de um ideal maior...

Quem me dera ser onda! É com estas palavras, proferidas por Ruca, um dos amigos e protectores do porco, que o livro termina. Desta forma, denuncia-se uma sociedade que não é livre e um sistema que aprisiona. Porém, foi esta a sociedade possível e na perda de todos os valores há alguns que permanecem, pelo menos entre as crianças, um deles é a amizade…

5 Response to "Doze meses, doze livros"

  1. Anónimo says:

    mas que bem!

    dr. etc.

    Pensei exactamente o mesmo.
    Como se costuma dizer " A Sandra quando sai, não fica em casa".

    S. G. says:

    ora aqui está uma voz diferente na análise. nunca é demais boas selecções porque vejo tanta gente indecisa nas escolhas do que quer ler.

    parabéns pelo texto :)

    Obrigada pelos comentários!

    PontoGi says:

    Que bem mesmo!obrigada, Sandra

Powered by Blogger